Artigo VII da Fórmula de Concórdia — Da Santa Ceia de Cristo

David Sousa
10 min readAug 18, 2021

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Trago-vos um pequeno excerto da Fórmula de Concórdia (documento luterano redigido em 1577) que expõe a doutrina luterana acerca do sacramento da eucaristia (a Ceia do Senhor). Aqui, a posição luterana da união sacramental, que consegue fazer jus ao que a Igreja sempre creu sobre a santa refeição eucarística, é comparada com as concorrentes católica romana (transubstanciação) e reformadas (presença espiritual / simbólica).

Imagem extraída de The life of Luther in forty-eight historical engravings. St. Louis: Concordia Publishing House, 119.

ARTIGO VII. DA SANTA CEIA DE CRISTO

1. Conquanto os mestres zwinglianos não devem ser incluídos no número dos teólogos aparentados pela Confissão de Augsburgo¹ visto que deles se separaram já ao tempo em que essa Confissão foi apresentada, todavia, já que se estão ingerindo e ousam disseminar seu erro sob o nome desta Confissão cris­tã, quisemos dar necessária informação também concernente a esta controvérsia.

STATUS CONTROVERSIAE
QUESTÃO PRINCIPAL ENTRE NOSSA DOUTRINA E A DOS SACRAMENTÁRIOS COM RESPEITO A ESTE ARTIGO

2. Se na santa ceia o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes, são distribuídos com pão e vi­nho e recebidos oralmente² por todos aqueles que fazem uso desse sacramento, quer sejam dignos, quer indignos, piedosos ou impios,³ crentes ou descren­tes, pelos crentes para consolo e vida, pelos descrentes para juízo? Os sacra­mentários dizem não; nós dizemos sim.

Para explicar essa controvérsia importa notar, de saída, que há duas espécies de sacramentários. Alguns são sacramentários crassos, que manifestam, com palavras transparentes⁴ e claras, como creem no coração: que na santa ceia apenas pão e vinho estão presentes, são distribuídos e recebidos oralmente. Outros, porém, são sacramentários sutis, e os mais prejudiciais de todos, que, em parte, falam bem especiosamente⁵ com as nossas palavras, e alegam que eles também creem numa presença verdadeira do verdadeiro, essencial e vivo corpo e sangue de Cristo na santa ceia, mas cape isso se dá espiritualmente, pela fé. Todavia, sob essas palavras especiosas⁶ retêm a mesma crassa opinião anterior, a saber, que na santa ceia nada senão pão e vinho estão presentes e são recebidos oralmente.

Pois que “espiritual” para eles outra coisa não significa senão o Espírito de Cristo, que estaria presente, ou o poder do corpo ausente de Cristo e seu mérito. Mas o corpo de Cristo de nenhum modo ou maneira estaria presente, estando, ao contrário, apenas acima, no mais alto céu. A ele, no céu, devemos elevar-nos pelos pensamentos de nossa fé, e lá, de jeito nenhum, porém, no pão e vinho da santa ceia, devemos procurar esse corpo e sangue.

AFFIRMATIVA
CONFISSÃO DA DOUTRINA PURA SOBRE A SANTA CEIA CONTRA OS SACRAMENTÁRIOS

1. Cremos, ensinamos e confessamos que na santa ceia o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes e são verdadeiramente distribuídos e recebidos com⁷ o pão e o vinho.

2. Cremos, ensinamos e confessamos que as palavras do testamento de Cristo não devem ser entendidas de nenhuma outra maneira senão em seu sentido literal, de tal forma que o pão não significa o corpo ausente e o vinho o sangue ausente de Cristo, mas, em virtude da união sacramental, são verdadei­ramente o corpo e sangue de Cristo.

3. Quanto à consagração, cremos, ensinamos e confessamos que obra nenhuma de homem nem a recitação do ministro efetuam essa presença do corpo e sangue de Cristo na santa ceia; isso, ao contrário, deve ser atribuído única e exclusivamente à virtude onipotente de nosso Senhor Jesus Cristo.

4. Mas ao mesmo tempo também cremos, ensinamos e confessamos, unanimemente, que na celebração da santa ceia as palavras da instituição de Cristo de nenhum modo devem ser omitidas, porém devem ser recitadas publicamente, conforme está escrito: “O cálice da bênção que abençoamos, etc.”⁸ 1 Co 11. Sucede essa bênção através da recitação das palavras de Cristo.

5. Contudo, os fundamentos em que nos firmamos nesse assunto contra os sacramentários são os que o Dr. Lutero propôs em sua Confissão Maior.⁹

“O primeiro é esse artigo de nossa fé cristã: Jesus Cristo é verdadeiro,
essencial, natural, completo Deus e homem em uma pessoa, inseparado e indiviso.

“O segundo: que a mão direita de Deus está em toda a parte’¹⁰ junto à qual Cristo, real e verdadeiramente colocado segundo a sua natureza humana, reina presente, e tem em suas mãos e debaixo de seus pés tudo o que há no céu e na terra. Nenhum outro homem, nem anjo, mas apenas o Filho de Maria está colocado aí, razão por que é capaz de fazer isso.

“O terceiro: a palavra de Deus não é falsa e não mente.

“O quarto: que Deus tem e conhece vários modos de estar em algum lu-
gar, e não apenas aquele único que os filósofos chamam de localis ou
espacial:”¹¹

6. Cremos, ensinamos e confessamos que o corpo e o sangue de Cristo são recebidos, em virtude da união sacramental, com o pão e o vinho não só espiritualmente, pela fé, mas também oralmente, não, porém, de modo cafarnaítico,¹² mas de maneira sobrenatural, celeste, segundo mostram claramente as palavras de Cristo, quando ordena tomar, comer e beber. como fizeram os apóstolos, pois esta escrito:¹³ “E todos beberam dele.” Mc 14. Da mesma forma diz São Paulo:¹⁴ “O pão que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo?” Isto é, quem come esse pão, come o corpo de Cristo, o que também testificam, unânimes, os mais eminentes dentre os mestres antigos da igreja: Crisóstomo, Cipriano, Leão I, Gregório, Ambrósio, Agostinho.

7. Cremos, ensinamos e confessamos que não só os verdadeiros crentes e os dignos recebem o verdadeiro corpo e sangue de Cristo, mas. também os in­dignos e os incrédulos.¹⁵ Todavia, se não se convertem e não se arrependem, recebem-nos não para vida e consolo, mas para juízo e condenação.

Pois, ainda que rejeitem a Cristo como Salvador, contudo têm de admiti-lo, mesmo contra a vontade deles, como severo Juiz, o qual é tão pre­sente para também exercer e manifestar o juízo relativamente aos convivas impenitentes, como está presente para operar vida e consolo no coração dos crentes verdadeiros e convivas dignos.

8. Cremos, ensinamos e confessamos também que existe apenas uma espécie de convivas indignos, a saber, os que não creem. A respeito deles está escrito:¹⁶ “O que não crê já está julgado” Por uso indigno do santo sacramento esse juízo cresce, torna-se maior e é agravado. 1 Co 11.¹⁷

9. Cremos, ensinamos e confessamos que nenhum crente verdadeiro, enquanto retém a fé viva, por fraco que seja, recebe a santa ceia para juízo. A santa ceia foi instituída especialmente para cristãos fracos na fé, contudo penitentes, para consolo e fortalecimento de sua débil fé.

10. Cremos, ensinamos e confessamos que a dignidade toda dos comensais dessa ceia celeste unicamente é a santíssima obediência e o perfeito mérito de Cristo, e neles exclusivamente consiste; mérito que fazemos propriedade nossa através de fé genuína e do qual somos certificados pelo sacramento. De modo nenhum a dignidade consiste em nossas virtudes ou em nossas preparações interiores e exteriores.

NEGATIVA
DOUTRINA CONTRÁRIA E CONDENADA DOS SACRAMENTÁRIOS

Por outro lado, rejeitamos e condenamos, unanimemente, todos os artigos errôneos seguintes, que são opostos e contrários à doutrina acima apresen­tada, e à fé e confissão singelas e respeito da ceia de Cristo.

1. A transubstanciação papista, quando se ensina no papado que o pão e o vinho na santa ceia perdem sua substância e essência natural, sendo reduzidos a nada de modo tal, que são transmudados para o corpo de Cristo, perma­necendo apenas a espécie externa.

2. O sacrifício papista da missa pelos pecados dos vivos e dos mortos.

3. Que aos leigos se dê apenas uma forma do sacramento, e que, contrariamente às claras palavras do testamento de Cristo, se lhes negue o cálice, sendo espoliados do sangue dele.

4. Quando se ensina que as palavras do testamento de Cristo não devem ser entendidas ou cridas simplesmente, conforme redigidas, mas que são ex­pressões obscuras, cujo sentido se deve primeiro buscar em outros lugares.

5. Que no santo sacramento o corpo de Cristo não é recebido oralmente com o pão, mas que com a boca apenas se recebe pão e vinho, o corpo de Cris­to, porém, só espiritualmente, pela fé.

6. Que o pão e o vinho na santa ceia não são mais do que marcas de reconhecimento pelos quais os cristãos reconhecem uns aos outros.

7. Que o pão e o vinho apenas são figuras, similitudes e tipos do remotamente ausente corpo e sangue de Cristo.

8. Que o pão e o vinho não são mais do que signo de lembrança, selo e penhor pelos quais se nos assegura que a nossa fé, quando se alça para o céu, lá se torna participante do corpo e sangue de Cristo tão verdadeiramente como
comemos e bebemos pão e vinho na ceia.

9. Que a certificação e o fortalecimento de nossa fé na santa ceia se efetuam apenas através dos signos externos do pão e do vinho e não pelo verda­deiro e presente corpo e sangue de Cristo.

10. Que somente o poder, a operação e o mérito do corpo e sangue ausentes de Cristo são distribuídos na santa ceia.

11. Que o corpo de Cristo está encerrado de tal maneira no céu, que de modo nenhum pode estar presente ao mesmo tempo em muitos ou em todos os lugares da terra¹⁸ onde sua santa ceia é celebrada.¹⁹

12. Que Cristo não prometeu nem poderia ter efetuado a presença essencial de seu corpo e sangue na santa ceia, porque a natureza e propriedade de sua natureza humana assumida não o poderia suportar nem admitir.

13. Que Deus, com toda a sua onipotência, não é capaz (coisa horrível de se ouvir) de fazer que seu corpo esteja essencialmente presente em mais de um lugar a um só tempo.

14. Que a fé, e não as palavras onipotentes do testamento de Cristo, efetua e realiza a presença do corpo e sangue de Cristo na santa ceia.

15. Que os crentes não devem procurar o corpo de Cristo no pão e vinho da santa ceia, mas que devem elevar os olhos do pão ao céu e lá procurar o corpo de Cristo.

16. Que cristãos incrédulos e impenitentes não recebem o verdadeiro corpo e sangue de Cristo na santa ceia, mas somente pão e vinho.

17. Que a dignidade dos convivas nessa ceia celeste não consiste apenas na verdadeira fé em Cristo, mas também na preparação exterior dos homens.

18. Que também os crentes verdadeiros, que têm e retêm fé genuína e viva em Cristo, podem receber esse sacramento para juízo, porque ainda são im­perfeitos na conduta exterior.

19. Que os elementos exteriores, visíveis do pão e do vinho no santo sacramento devem ser adorados.

20. Da mesma forma também entregamos ao justo juízo de Deus todas as perguntas (que a decência não nos permite referir) e expressões atrevidas, zombeteiras e blasfemas. que os sacramentários avançam bem blasfemamente e com grande ofensa, de modo grosseiro, carnal, cafarnaítico²⁰ e abominável a respeito dos mistérios sobrenaturais e celestes desse sacramento.

21. De sorte que com isso condenamos totalmente o comer cafarnaítico²¹ do corpo de Cristo, como se a gente dilacerasse sua carne com os dentes e a digerisse como outro alimento, o que os sacramentários nos impõem deliberadamente, contra o testemunho de sua consciência, por sobre os nossos múltiplos protestos, tornando, assim, nossa doutrina odiosa entre os ouvintes deles. E, ao contrário, sustentamos e cremos, de acordo com as simples palavras do testamento de Cristo, um comer verdadeiro, porém sobrena­tural, do corpo de Cristo, como também o beber do seu sangue, o que os sentidos e a razão do homem não compreendem, mas, como em todos os outros ar­tigos da fé, trazemos o entendimento cativo à obediência de Cristo, e esse mistério não é apreendido de nenhuma outra maneira senão pela fé somente, sendo revelado na palavra.

Notas:

  1. Die Augsburgische Konfessionsverwandte Theologen. Texto lat.: (os teólogos) qui Au­gustanam Confessionem agnoscunt et profitentur (“que reconhecem e professam a Confissão de Augsburgo”).
  2. Na edição Tappert (p. 481) um cochilo tornou o status controversiae ininteligível: “The question is, In the Holy Communion are the true body and blood of our Lord Jesus Christ truly and essentially present if they are distributed with the bread and wine and if they are received orally …”
  3. Unfromb. Traduzimos com “impío” no sentido de “que, ou quem não tem piedade, no sentido de devoção religiosa” (não confundir com “ímpio”: “que, ou quem não tem fé; incrédulo, herege”).
  4. No original: Teutschen ( = deutschen). Texto latino: perspicuis.
  5. Scheinbar = glänzend; trügerisch, heuchlerisch (A. Götze, Glossar). Texto lat.: splen­dide (esplendidamente, especiosamente). Ed. Tappert, p. 482: “plausibly”. Veja a nota 6·
  6. Scheinbaren. Lat.: splendidis. Ed. Tappert, p. 482: “plausible” Veja a nota 5.
  7. Vid. Confissão de Augsburgo, X, trad. do texto alemão, nota em “sob”.
  8. 1 Co 10.16; 2 Co 11.23–25.
  9. Cf Vom abendmahl Christi. Bekenntnis, de 1528. WA XXVI 326–327.
  10. WA XXVI, 326.
  11. Localem oder raumlich. texto lat.: localem aut circumscriptum. Em seu escrito Vom Abendmahl Christi. Bekenntnis (de 1528), Lutero, depois de dizer que os sofistas (i.e., os escolásti­cos) falam acertadamente de três espécies de presença: a local ou circunscritiva, a definitiva e a re­pletiva, explica os três tipos de presença, Cf. WA XXVI 327–329. Cf. Luís de Raeymaeker, Filosofia do Ser, S. Paulo, Herder. 1967, trad. de Carlos Lopes de Mattos, p. 326, nota 38: “Os escolásticos distinguem três espécies de presença: a circunscritiva, própria das coisas materiais, justapostas na extensão espacial; a definitiva, adstrita a uma porção definida, ou limitada, do espaço, e que é própria da atividade espiritual finita em relação com a matéria; a repletiva, própria do Ser divino, que preenche tudo com sua onipresente atividade criadora”.
  12. No original: Kapernaitisch. Cf. Jo 6.52: “Como pode este dar-nos a comer a sua pró­pria carne?” A interpretação dos judeus em Cafarnaum deu origem à expressão “comer cafar­naítico”. Os sacramentários afirmavam que a doutrina luterana da presença real implicava um comer grosseiramente físico do corpo de Cristo. Alguns chegaram a falar em canibalismo.
  13. Mc 14.23.
  14. 1 Co 10.16.
  15. 1 Co 11.27.
  16. Jo 3.18.
  17. 1 Co 11.27,29.
  18. A ed. Tappert (p.485) parece insinuar uma gradação de dificuldades inexistente nos ori­ginais alemão e latino e que não faria sentido: “in many places, still less in all places.”
  19. Além do artigo XXV do Consensus Tigurinus, cf. ainda, v.g, este período do art. XXI (texto lat. em Die Bekenntnisschriften der Reformierten Kirche, ed. de E.F.K. Müller, Leipzig, 1903, p. 162): Nam quum signa hic in mundo sint, oculis cernantur, palpentur manibus, Christus quatenus homo est, non alibi quam in caelo, nec aliter quam mente et fidei intelligentia quaerendus est (“Pois, ainda que os sinais estão aqui no mundo, sendo vistos com os olhos e apalpados com as mãos, Cristo, [con­tudo], enquanto homem, não deve ser procurado em outro lugar senão no céu, nem de outra ma­neira a não ser com a mente e a inteligência da fé”).
  20. Veja a nota 12.
  21. Veja a nota 12.

Fonte: Livro de Concórdia — As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Ed. Concórdia, 2007, pp. 518–523.

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David Sousa

Alguém fascinado pela beleza da natureza e pela Beleza para a qual ela aponta. Meus principais interesses no momento são Ciências naturais e Teologia cristã.