Citações de Protestantes a Favor do Costume de Oração pelos Mortos

David Sousa
10 min readSep 8, 2022

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Catacumba de Comodila, em Roma

Como eu fui criado como protestante, nunca tive nem presenciei o costume de orar pelos mortos. O senso comum protestante é que essa é mais uma daquelas práticas ‘heréticas’ do catolicismo.

Porém, ao longo de muitos anos eu me aprofundei no estudo da história da Igreja, teologia e tradição cristã, e tenho descoberto muitas coisas nessa jornada. Uma das coisas que descobri é que a oração pelos mortos, pelo menos no caso dos crentes que já faleceram, é um costume quase tão antigo quanto o próprio cristianismo. Ele praticamente sempre esteve presente no hábito e na liturgia dos cristãos, é praticamente impossível identificar um momento onde esse costume teria sido introduzido no cristianismo, como uma inovação. Não há registro de alguém se manifestando contra ou combatendo esta prática, como se fosse uma inovação espúria a fé cristã em algum tempo.

Aliás, a oração pelos mortos já era um costume entre os judeus no tempo de Jesus, como pode-se evidenciar pela literatura apócrifa / deuterocanônica (Tobias 12.12 menciona a prática e 2 Macabeus 12.46 chama a oração pelos mortos de um “costume santo e salutar”). Assim, esse costume apenas passou para os cristãos por continuidade.

Por exemplo, podemos citar também o epitáfio de Abércio de Hierápolis, no ano 216 d.C, que pedia orações pela sua alma; Tertuliano e São Cipriano, que foram bispos na cidade de Cartago entre os séculos II e III, possuem várias citações atestando o costume; na liturgia das Constituições Apostólicas (datada do século IV), o diácono diz: “Oremos pelos nossos irmãos que repousam em Cristo”… e assim por diante.

Ao contrário do que se possa pensar, primeiro veio o costume, e depois vieram as justificações teológicas desse costume (ou seja, as perguntas “por que” e “para que” fazê-lo). No ocidente, o primeiro a especular teologicamente sobre o tema foi Agostinho, o que foi levando, ao longo de séculos, ao desenvolvimento da doutrina do purgatório, que só foi dogmatizado no Concílio de Florença, no século XV. No cristianismo oriental, a especulação teológica não se desenvolveu tanto, e não existe o conceito de purgatório para eles, de forma que eles possuem outras justificativas para o costume de orar pelos fiéis falecidos.

Porém, o que mais me surpreendeu no meu estudo, foi encontrar a defesa da prática da oração pelos mortos entre protestantes. Sim, isso mesmo. Protestantes. Em grande maioria, luteranos e anglicanos, mas protestantes. São pessoas que reconheceram, assim como eu, o valor histórico desta tradição e costume, sem necessariamente se apoiar nas mesmas justificativas teológicas que os católicos romanos ou católicos ortodoxos; além do que, eventualmente, encontraram alguma fundamentação bíblica para a prática (falarei disto mais adiante).

A seguir compilo uma lista de citações de autores protestantes em defesa da oração pelos mortos.

Martinho Lutero (1483–1546), reformador alemão

“Quanto aos mortos, visto que a Escritura não nos dá nenhuma informação sobre o assunto, não considero pecado orar com devoção livre desta ou de outra forma semelhante: “Querido Deus, se esta alma está em uma condição acessível à misericórdia, sê tu gracioso com ela”. E quando isso for feito uma ou duas vezes, que seja suficiente.” (Obras de Lutero, Volume 37, pág. 369, 1528)

Philipe Melanchton (1497–1560), reformador alemão

“Agora, no que diz respeito aos adversários (católicos) citando os Padres a respeito da oferta pelos mortos, sabemos que os antigos falam de oração pelos mortos, que não proibimos; mas nós desaprovamos a aplicação ex opere operato da Ceia do Senhor em favor dos mortos”. (Apologia da Confissão de Augsburgo, 1531)

Ulrico Zwínglio (1484–1531), reformador suíço

“Que uma pessoa, por preocupação pelos mortos, pede a Deus para lhes mostrar misericórdia, eu não desaprovo. Mas estipular um tempo para isto e mentir por causa de ganho, não é humano mas diabólico.” (67 Artigos, Art. 60)

João Calvino (1509–1564), reformador francês

Calvino, diferente dos outros reformadores, parecia ter mais reservas com a prática da oração pelos mortos do que os outros reformadores. Mas ele se posicionava assim por causa do perigo que a prática possui em levar a superstições, como alegadamente ela levou no período medieval. A reserva de Calvino influenciou as gerações seguintes de protestantes, levando a um senso comum de repudiar a prática. Mas num trecho de uma carta, Calvino mostra que não era, em princípio, contrário a ela.

“Quanto ao purgatório, sabemos que a Igrejas antiga fazia alguma menção aos mortos em suas orações, mas isso era feito raramente e com sobriedade, e consistia apenas em algumas palavras. Era, em suma, uma menção na qual era óbvio que nada mais pretendia, do que atestar de passagem a afeição que se sentia pelos mortos. Na época, ainda não haviam nascido os arquitetos, por quem o seu purgatório foi construído” (Carta ao Cardeal Sadoleto, 1539)

Thomas Cranmer (1489–1556), reformador inglês

Cranmer foi o responsável por introduzir a reforma na Igreja da Inglaterra. Ele escreveu e compilou as duas primeiras edições do Livro de Oração Comum (LOC), que é o manual oficial de liturgia da Igreja Anglicana. Em boa parte, esse manual foi baseado no Rito de Sarum, que era a liturgia vigente na Inglaterra antes da Reforma. Esse rito possui não raras orações pelos mortos, por exemplo:

“Lembra-te também, ó Senhor, dos teus servos… que partiram antes de nós com o sinal da fé e repousam agora no sono da paz. A eles, ó Senhor, e a todos os que repousam em Cristo, nós te suplicamos que concedas um lugar de refrigério, luz e paz. Pelo mesmo Senhor Cristo. Amém.”

Na primeira edição do LOC, de 1549, Cranmer incluiu diversas orações explícitas pelos mortos, seguindo o rito de Sarum. Entretanto, a maioria das orações foi excluída na edição seguinte, de 1552, provavelmente para evitar a confusão com a doutrina romana do purgatório. O que restou no LOC foram orações implícitas pelos mortos, por exemplo:

“Não te lembres, Senhor, das nossas iniquidades, nem das iniquidades dos nossos pais” (Visitação dos Enfermos, LOC 1662).

ou:

Entregamos à terra o corpo do nosso querido irmão (Nome) — terra à terra, cinza às cinzas, pó ao pó; e encomendamo-lo ao julgamento justo e misericordioso d’Aquele que conhece inteiramente o coração dos homens, Jesus Cristo, nosso Senhor.(Oração de Encomendação, LOC 1662).

Orações mais explícitas em favor dos falecidos foram reintroduzidas em versões mais recentes do LOC a partir do século XX.

Livro de Serviço Luterano

“Dê a toda a Sua Igreja no céu e na terra Sua luz e Sua paz. (…) Conceda que todos os que foram nutridos pelo santo corpo e sangue de Seu Filho possam ser elevados à imortalidade e incorrupção para se assentarem com Ele em Seu banquete celestial.” (Livro de Serviço Luterano, Serviço Fúnebre)

Lancelot Andrewes (1555–1626), bispo anglicano

“Tu que és Senhor tanto dos vivos como dos mortos; de quem somos nós a quem o mundo presente ainda mantém na carne; de quem são igualmente aqueles que, despidos do corpo, o mundo vindouro já recebeu; dá aos vivos a misericórdia e graça, aos mortos repouso e luz perpétua; dá à Igreja verdade e paz, a nós pecadores penitência e perdão.” (Devoções Privadas)

William Perkins (1558–1602), líder puritano

“Conclusão 2. Ademais, oramos de modo geral pelos fiéis falecidos, para que Deus acelere sua alegre ressurreição e o cumprimento pleno de sua felicidade, tanto no corpo como na alma; e isso nós pedimos ao dizer ‘Venha o teu reino’, ou seja, não somente o reino da graça, mas também o reino da glória no céu.” (A Reformed Catholike, 7, II, 1592)

Richard Field (1561–1616), clérigo anglicano

“Pois no tocante à primeira das duas, que é a oração pelos mortos, é bem sabido que os protestantes não condenam simplesmente toda oração desse tipo, pois eles oram pela ressurreição, absolvição pública no dia do juízo e perfeita consumação e felicidade daqueles que descansam no Senhor, e pelo aperfeiçoamento do que quer que lhes falte.” (Of the Church)

William Forbes (1585–1634), bispo anglicano

“O costume de fazer orações e oblações pelos falecidos é antiquíssimo, e mui unanimemente recebido ao longo de toda a Igreja de Cristo, desde o tempo mesmo dos apóstolos; então não deve mais ser rejeitado, como o é agora pelos protestantes, como se fosse ilícito, ou ao menos inútil e supérfluo.” (Considerationes Modestae)

John Cosin (1594–1672), bispo anglicano

“Embora, portanto, como podemos certamente afirmar e concluir, que as almas dos fiéis, depois de terem partido de seus corpos, estejam “em alegria e felicidade” (como reconhecemos na primeira parte desta oração), porque eles ainda não estão em tal grau de alegria e felicidade, em que não poderiam ter ou receber mais do que já receberam, portanto, na última parte desta nossa oração, rogamos a Deus que lhes dê uma “consumação completa e perfeita de bem-aventurança, tanto no corpo como na alma, em Seu eterno reino de glória”, que ainda está por vir. E qualquer que seja o efeito e fruto desta oração, embora seja incerto, ainda assim mostramos a caridade que devemos a todos aqueles que são nossos conservos de Cristo; e a esse respeito, nossa oração não pode ser condenada; não sendo nem ímpio, nem impróprio para aqueles que professam a religião cristã. Da mesma forma, se eu quisesse orar a Deus por meu pai ou minha mãe, por meu irmão ou minha irmã, por meu filho ou minha filha, ou qualquer outro amigo meu que esteja viajando, rogando a Ele que mantenha-os em seu caminho e prosperem, e livre-os de todo perigo e doença, até que eles cheguem com segurança e felicidade ao fim de suas jornadas, e ao lugar onde eles desejam estar; mesmo que enquanto eu oro assim por eles, porventura eles já tenham chegado a esse lugar com toda a segurança, não tendo encontrado perigos ou doenças pelo caminho, sem que eu saiba, tendo assim toda a minha oração sido antecipada, a solicitude e caridade, entretanto, que tive por eles, não podem ser repreendidos justa ou caridosamente por quaisquer outros.” (The Works of John Cosin, Vol. V — Notes and Collections on the Book of Common Prayer, 1855, p. 377).

Johann Friedrich Starck (1680–1756), teólogo luterano

“Refrigere a alma que agora partiu com a consolação e alegria celestiais, e cumpra nela todas as promessas graciosas que em Tua Santa Palavra fizeste para aqueles que creem em Ti. Concede ao corpo um descanso suave e quieto na terra até o Último Dia, quando reunirás corpo e alma e os conduzirás à glória, para que toda a pessoa que Te serviu aqui possa lá ser preenchida com a alegria celestial.” (Starck’s Prayer Book, Revised Concordia Edition, pg. 345)

John Wesley (1703–1791), clérigo anglicano e fundador do Metodismo

“Neste tipo de oração geral, portanto, pelos fiéis falecidos, considero-me claramente justificado, tanto pela Antiguidade primitiva, como pela Igreja da Inglaterra, e pelo Pai Nosso (…) Eu creio que rezar pelos fiéis falecidos é um dever a ser observado”. (HODGES, John. John Wesley in Company With High Churchmen. London, 1872, p. 84–87)

Wesley ainda deu uma justificativa para a oração pelos crentes falecidos — de que eles podem ainda crescer em graça mesmo depois da morte:

“Apesar disso, essa pessoa [santa] ainda cresce na graça, no conhecimento de Cristo, no amor e na imagem de Deus; e continua crescendo, não apenas até a morte, mas por toda a eternidade.” (Explicação Clara da Perfeição Cristã)

C.S. Lewis (1898–1963), escritor, acadêmico e teólogo anglicano

“Claro que eu oro pelos mortos. A ação é tão espontânea, quase que de modo inevitável, somente o caso teológico mais compulsivo contra ela me impediria. E eu mal sei como o resto das minhas orações iria sobreviver se aquelas para os mortos fossem proibidas. Na nossa idade, a maioria daqueles que mais amamos estão mortos. Que tipo de comunicação com Deus eu poderia ter se o que eu mais amo fosse imencionável a Ele? Na visão protestante tradicional, os mortos estão todos ou condenados ou salvos. Se estão condenados, a oração por eles é inútil. Se estão salvos, é igualmente inútil. Deus já fez tudo por eles. O que mais podemos pedir? Mas não cremos que Deus já fez e já está fazendo tudo o que pode pelos vivos? O que mais podemos pedir? Ainda assim, é-nos dito que peçamos. “Sim”, alguém responderá, “mas os vivos ainda estão na estrada. Mais provações, desenvolvimentos, possibilidades de erro esperam por eles. Porém os salvos já foram aperfeiçoados. Eles terminaram a corrida. Orar por eles pressupõe que o progresso e a dificuldade ainda são possíveis. Na verdade, você está apresentando algo como o Purgatório.” Bem, suponho que esteja. Embora, até mesmo no Céu, algum aumento perpétuo da beatitude, alcançado por uma autorrendição continuamente mais extática, sem a possibilidade de fracasso, mas não, talvez, sem seus próprios ardores e esforços — pois o deleite também tem suas severidades e encostas íngremes, como os amantes bem o sabem — pode supor-se que há. Mas não vou enfatizar, ou conjeturar, esse aspecto no momento.” (Cartas a Malcolm: Principalmente sobre a oração, XX, 1964)

N.T. Wright (1948-), bispo anglicano

“Uma vez que tanto nós como os santos que partiram estamos em Cristo, partilhamos com eles da “comunhão dos santos”. Eles ainda são nossos irmãos e irmãs em Cristo. Quando celebramos a eucaristia eles estão presentes conosco, junto aos anjos e arcanjos. Por que então não deveríamos orar por eles e com eles? (…) [N]ão vejo razão para não orarmos pelos mortos e com eles, e boas razões para fazê-lo — não pra que eles saiam do purgatório, mas para que sejam renovados e cheios de paz e da alegria de Deus. O amor é comunicado por meio da oração; nós ainda os amamos; por que não sustentá-los, em amor diante de Deus?” (Surpreendido pela Esperança, Ed. Ultimato, 2009, p.188).

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Como apêndice à minha compilação, gostaria de falar um pouco sobre a principal (não a única) fundamentação bíblica acerca da oração pelos mortos, que é o texto de 2Timóteo 1.16–18. Nesse texto, Paulo ora a Deus pela vida de Onesíforo, pedindo a Deus misericórdia para ele no dia do juízo. Pelo caráter do pedido, e por outros fatores no contexto, como o fato de na saudação final da carta apenas a família de Onesíforo é mencionada, e não o próprio, deduz-se que ele estaria morto. Essa opinião não é unânime entre os biblistas protestantes, mas ainda assim existe um número não desprezível de comentaristas bíblicos do lado protestante que se posicionam a favor do fato de Paulo estar orando por um morto no texto. Dave Armstrong, um apologista católico norte-americano, compilou uma lista com dez autores protestantes que compartilham desta opinião. O artigo foi traduzido em português pelo site Apologistas Católicos. Os autores são:

  • Alfred Plummer (1841–1926), teólogo anglicano
  • James Maurice Wilson (1836–1931), teólogo anglicano
  • Sydney Charles Gayford, teólogo anglicano
  • John Henry Bernard (1860–1927), teólogo anglicano
  • Donald Guthrie (1915–1992), teólogo anglicano
  • William Barclay (1907–1978), teólogo presbiteriano
  • J. N. D. Kelly (1909–1997), teólogo anglicano
  • John E. Sanders (1956-), teólogo evangélico
  • Philip Schaff (1819–1893), teólogo reformado
  • Charles John Ellicott (1816–1905), teólogo anglicano

Créditos a Jadson Targino Jr. e ao Rev. Gyordano Montenegro Brasilino por fornecer boa parte das citações traduzidas utilizadas aqui.

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David Sousa

Alguém fascinado pela beleza da natureza e pela Beleza para a qual ela aponta. Meus principais interesses no momento são Ciências naturais e Teologia cristã.