Cultivando Virtudes

David Sousa
11 min readApr 19, 2022

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Sermão pregado na Primeira Igreja Batista em Vilar dos Teles (São João de Meriti — RJ) em 27/01/2019
Autor: David Sousa

2 Pedro 1.5
“E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência (…)”

O texto continua, pedindo para que outras coisas sejam acrescentadas, mas eu gostaria apenas de me ater ao primeiro pedido do apóstolo Pedro: “acrescentai à vossa fé a virtude”; Façamos uma breve análise do texto.

O primeiro destaque que quero fazer no texto é a palavra “acrescentai”. Há duas coisas que podemos notar a partir dela:

Em primeiro lugar, “acrescentar” é colocar algo onde já havia outra coisa antes. A vida cristã começa com a . Nós aprendemos que a nossa salvação vem pelo ato de crer:

“(…) [Paulo e Silas] disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa” Atos 16.31

“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé (…)” Efésios 2.8a

“ (…) esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.” Romanos 10.8,9

Essa fé não é apenas acreditar em algo, mas confiar nas palavras e na obra de uma pessoa.

Nós também acreditamos que somos justificados pela fé, ou seja, assim que cremos em Jesus, e ele nos alcança com sua graça salvadora, nosso passado não importa mais, Deus nos reveste com a justiça de Cristo e somos declarados justos diante de Deus. E daí muitos pensam que “é isso e acabou”; “Pronto, eu estou salvo, agora vou viver minha vida”. Mas estamos muito enganados se pensarmos assim: afinal, esse é apenas o começo da salvação.

Depois da justificação, há o que chamamos de santificação. Enquanto na justificação Deus nos declara justos, na santificação nós gradualmente vamos nos tornando justos de fato. A nossa vida (cristã) é assim: desde o primeiro momento em que cremos até o resto de nossas vidas, tudo se resume a isso: santificação. Ou seja, existe algo deve ser acrescentado a fé que nos foi dada inicialmente pela graça de Deus (e esse algo é a santificação).

A segunda coisa a respeito da palavra “acrescentai” é que ela consiste em um verbo no imperativo. É uma ação humana. Nós acreditamos que a salvação vem de Deus, e é um ato de Deus em relação ao homem. Ninguém pode salvar-se a si mesmo. Paulo diz “Todos pecaram e estão destituidos da glória de Deus” (Rm 3.23) e também “Pela graça sois salvos, por meio da fé; E isto não vem de nós mesmos, mas é dom de Deus” (Ef 2.8). Mas à medida em que recebemos graça da parte de Deus, Ele espera de nós certas respostas e atitudes. A santificação, da qual falamos antes, tem um caráter duplo. Ao mesmo tempo que é concedida pela graça de Deus, também requer o nosso esforço. Pedro traduz essa ideia com o “acrescentar a fé à virtude”, Paulo também falou disso “desenvolvei a vossa salvação” (Fp 2.12). Jesus também disse “esforçai-vos para passar pela porta estreita” (Lc 13.24).

O texto que lemos ainda completa: “empregando toda a diligência”, ou seja, nós precisamos não só acrescentar a virtude à fé, mas também fazer isso com diligência. Alguém sabe o que significa diligência? Cuidado, interesse, disposição, zelo. Também poderia dizer “esforço”.

Tendo feito esta breve análise, podemos agora nos perguntar. O que significa “virtude”? Esta palavra é muito importante, e infelizmente não se ouve falar muito disso em nossas igrejas evangélicas. Vamos tentar definir o que são virtudes, e meditar sobre como podemos cultivá-las, acrescentando-as à nossa vida e fé cristã.

1) Definição de Virtude

Essa palavra que lemos como “virtude” em nossas bíblias, era no texto original grego a palavra areté. Pedro está usando essa palavra numa carta que era destinada a muitas igrejas, algumas delas com gentios gregos convertidos. Antes de Pedro usar essa palavra nessa carta, ela já era bastante conhecida e usada na filosofia grega, particularmente pelos filósofos que estudavam as áreas de Moral e Ética. O filósofo Aristóteles possui uma obra com o título “Sobre virtudes e vícios”, datada de 300 anos antes de Cristo. Os filósofos estoicos, com quem Paulo debateu em Atos 17, também falavam muito sobre virtudes. Assim, quando os gregos que se convertiam ao cristianismo ouviam essa palavra, eles sabiam do que se tratava. E depois dessas coisas, muitos estudiosos cristãos, teólogos, também escreveram sobre o que é a virtude ou quais são as virtudes, e como se tornar uma pessoa virtuosa. Assim, existem várias definições possíveis de virtude. Uma dessas definições é oportuna para o nosso trabalho:

“Uma disposição habitual e firme para conhecer e praticar o bem, e evitar o mal.”

Essa definição é interessante porque alude às palavras de Paulo em Romanos 12.9: “O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem.” Em outras palavras, “SEJA VIRTUOSO”.

Exemplos de virtude: sendo virtudes disposições para praticar o bem e evitar o mal, podemos citar muitos exemplos: a Justiça (uma disposição para tratar os outros igualmente e não injustamente), a Veracidade (uma disposição para falar a verdade e evitar a mentira), a Sabedoria (disposição para agir de acordo com a razão e não ser insensato), a Prudência, a Perseverança, o Domínio Próprio, a Coragem, a Integridade, dentre muitas outras. Não existe uma lista completa e definitiva de virtudes, mas na própria Bíblia podemos encontrar algumas. A mais conhecida é aquela de Gálatas 5.22, que Paulo chama de “fruto do espírito”.

Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. (…) Gálatas 5.22

Mas há outras, e em muitas delas algumas virtudes se repetem:

Portanto, como povo escolhido de Deus, santo e amado, revistam-se de profunda compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência. Colossenses 3.12

pois o fruto da luz consiste em toda bondade, justiça e verdade; Efésios 5:9

Você, porém, homem de Deus, fuja de tudo isso e busque a justiça, a piedade, a , o amor, a perseverança e a mansidão. 1 Timóteo 6.11

Em outras palavras, podemos dizer que ser virtuoso é ser uma pessoa moralmente excelente, uma pessoa “boa”. E quando ouvimos isso, isso até nos parece uma espécie de mensagem genérica: “precisamos ser pessoas boas…”, o que não é muito diferente do que se ouve por aí no mundo, ou em outras religiões. Então, a mensagem do apóstolo é apenas essa? Que você deve ser uma pessoa boa? Resumidamente, sim, é exatamente essa. Contudo, para ser mais completo, não foi apenas isto que ele falou. Ele disse: “ACRESCENTAI A VIRTUDE À FÉ”. Eu tenho fé em Cristo, tive consciência dos meus pecados, cri no sacrifício de Cristo na cruz, na sua ressurreição, recebi graça e perdão, e… agora sim, o que me resta é acrescentar a virtude à fé.

2) Para cada Virtude há Vícios correspondentes

A palavra “vício” originalmente significava o contrário de virtude. Ou seja, um “vício” é uma disposição para fazer o mal e evitar o bem. Hoje em dia entendemos que um vício é uma espécie de hábito escravizador. Mas no entendimento antigo, a escravização é o resultado de praticar o vício como um hábito.

Então, sempre que podemos pensar em uma virtude, também podemos pensar em um vício correspondente. Vamos ver alguns exemplos. Falar a verdade é uma virtude — ser mentiroso é um vício. Ser justo é uma virtude. Ser parcial (favorecer mais uma pessoa do que outra) é um vício. A fidelidade é uma virtude. A traição é um vício. Adorar o Deus verdadeiro é uma virtude. A idolatria é um vício.

Note, entretanto, que eu disse que para cada virtude há vícios correspondentes. Muitas vezes existe mais de um jeito de se transformar uma virtude em um vício. Isto acontece porque geralmente a virtude é moderada, é o “caminho do meio”. Pode ser que tanto a falta ou o excesso dela se constitua em um vício.

Exemplos. sobre falar a verdade: é claro que a temos que falar a verdade sempre. Mas há ocasiões em que é melhor não falar nada, porque você pode irritar ou ofender uma pessoa. Falar certas verdades às vezes pode ser uma imprudência.

Outro exemplo que parece improvável: o amor. Podemos ser levados a pensar que quanto mais amor, melhor. Mas isto é falso. A Bíblia nos dá a medida certa que devemos amar:

“E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Mateus 22:37–39

Somente o amor a Deus é que é sem medida, acima de tudo. Nós devemos amar as pessoas, mas não mais do que amamos a Deus. Amar mais as pessoas do que a Deus é um vício, um pecado.

“Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.” Mateus 10.37

Da mesma forma, amar os outros mais do que a si mesmo é um vício. A Bíblia diz para amar o próximo com a mesma medida que você ama a si mesmo, nem mais nem menos. Então amar demais ou amar “de menos” se constitui em um vício.

E de fato, se olharmos na Bíblia, existem mais listas de pecados do que listas de virtudes. (No Novo Testamento encontramos oito listas de virtudes: Cl 3,12; Ef 4,2; 5,9; Gl 5,22; 1 Tm 4,12; 1Tm 6,11; 2 Pd 1,5–7; e dezoito listas de vícios: Mc 7,21–22; Rm 1,29–32; Rm 13,13; 1 Cor 5,10–11; 1 Cor 6,9–10; 2 Cor 12,20–21; Gl 5,19–21; Ef 5,3–5; Cl 3,5. Cl 8–9; 1 Tm 1,9–10; 2 Tm 3,2–5; Tt 3,3; 1 Pd 2,1; Ap 21,8; Ap 22,15). É exatamente por isso que cultivar virtudes é difícil. As virtudes estão rodeadas de vícios. Hebreus 12.2 fala do “pecado que tão de perto nos rodeia”. Aí entra a nossa dificuldade.

3) Cristo é o nosso Modelo de Virtude e a nossa Fonte de Virtude

Nosso Modelo: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo (…)” 1 Coríntios 11.1; “Portanto, sede imitadores de Deus, como filhos amados” Efésios 5.1

“pois Cristo também sofreu por vós, legando-vos também este exemplo, a fim de que sigais os seus passos. Ele não cometeu pecado algum, nem qualquer engano foi encontrado em sua boca.” 1 Pedro 1.21,22

Cristo é exemplo para nós. É assim que fazemos e temos que fazer na vida cristã, o tempo todo: se espelhar nele, fazer o que Ele faria. “Olhando fixamente para o Autor e Consumador da fé: Jesus” (Hb 12.2a), Ele é o nosso alvo: “Prossigo para o alvo, pelo prêmio (…) em Cristo Jesus (Fp 3.14).

Jesus era perfeito e viveu uma vida perfeita. A conclusão que tiramos disto é que nosso objetivo também é a perfeição. Não sou eu que digo isto, é a própria Palavra de Deus. Deus fala a Moisés em Levítico e o próprio Pedro repete a citação:

“Mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver; Porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou santo.” 1 Pedro 1.15,16 (citando Levítico 20.7)

E o próprio Jesus também diz: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.48).

Irmãos, estas palavras são muito duras. Muito difíceis. Quem de nós já conseguiu alcançar a perfeição, ao menos de perto? Parece um esforço difícil. Mas é um esforço necessário, senão não estaria aqui na Bíblia. Afinal, o que significa “santificação”? Não é tornar-se santo? Ser como Jesus, esse é o nosso objetivo!

Mas aqui entra a segunda parte do título, e o que nos traz conforto. Ser santo com o esforço próprio de fato é uma tarefa impossível. Mas Cristo não é só o nosso Modelo de virtude, mas também a nossa Fonte de virtude.

Quando digo isso lembro de quando Jesus estava curando em seu ministério: “E toda a multidão procurava tocar-lhe, porque saía dele virtude, e curava a todos.” (
Lc 6.19). A mesma virtude que saía de Jesus para curar as pessoas, é ministrada em nós pela graça, no processo de santificação.

Pedro também explica melhor no texto em que lemos:

“o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade (…) Ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.” 2 Pedro 1.3,4

Na santificação vamos adquirindo pouco a pouco a natureza divina. É Cristo em nós. Nisso consiste a simbologia de comer o corpo de Cristo que nos é apresentada na Ceia do Senhor: nós somos aquilo que comemos. À medida em que avançamos na vida cristã, e “comemos o corpo de Cristo”, devemos nos tornar mais parecidos com Ele. A santificação é um milagre acontecendo em nós, dia após dia.

Ainda assim, a santificação requer esforço; mas o esforço é movido pela graça: sempre que alcançamos uma virtude ou abandonamos um vício na caminhada cristã, no final o mérito não é nosso, mas todo de Cristo.

4) A vida cristã consiste em transformar vícios em virtudes

É a transformação do nosso caráter no caráter de Cristo, a transformação da nossa mente na “mente de Cristo” (1 Co 2.16).

Estamos acostumados a pensar que a vida cristã é apenas se guardar do pecado. Ouvimos muitos sermões sobre isso. Mas lutar contra o pecado (os vícios) e cultivar virtudes são dois lados da mesma moeda. Não podemos fazer apenas um deles.

A vida cristã consiste nisso, se resume a isso. Cada esforço que você faz na sua vida deve ter transformar vícios em virtudes como objetivo final. Cada oração e pedido a Deus também. Como são as nossas orações? A gente pede para que Deus faça os nossos desejos, realize nossas vontades, ou pedimos para que “Seja feita a Tua Vontade” (Mt 6.10)? “A vontade de Deus é esta: a vossa santificação” (1 Ts 4.3). Priorizar o cultivo das virtudes na nossa vida é “buscar em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça” (Mt 6.32). E não apenas devemos fazer isso em primeiro lugar, mas também “empregando toda a diligência”: com toda a nossa disposição e esforço!

Conclusão

Precisamos aplicar este texto em nossas vidas todos os dias. “Acrescentar à fé a virtude” Pense todos os dias quando acordar: o que eu vou fazer hoje pra chegar mais perto daquela virtude e ficar mais longe daquele vicio? E no final do dia: o que eu fiz hoje?

O texto que lemos inicialmente tinha uma continuação. Falamos apenas da primeira parte, no versículo 5. Mas a nossa fé precisa ser acrescentada do conhecimento, da temperança, paciência, piedade, amor e caridade. Note que todas essas são virtudes também! Tudo isso pode ser resumido em “acrescentar virtude à fé”.

Então… seja grato. Seja virtuoso. Seja mais como Jesus. Viva para isso. Se a vida cristã consiste em cultivar virtudes, o objetivo da nossa vida deve ser esse. Cada dia que a gente vive aqui, e que Deus permite que continuemos vivendo, é para que sejamos aperfeiçoados e transformados. É claro que temos outras necessidades na vida. Precisamos trabalhar, descansar, nos divertir, passamos por problemas, mas nada disso pode tirar o nosso foco. De fato, devemos ver as lutas, desafios e situações da vida como instrumentos da providência de Deus para o nosso cultivo das virtudes. Para nos tornarmos mais perseverantes, mais pacientes, mais esperançosos, mais fiéis, mais caridosos, mais prudentes… mais santos.

Eu quero terminar destacando o versículo 8, onde Pedro diz que as virtudes precisam existir e estarem aumentando em nós. Se isso não acontecer, nos tornamos inúteis e infrutíferos. Uma vida cristã sem virtudes não tem utilidade. Não tem resultado. Não tem sentido. Olhe para a sua vida. Se você não está se tornando uma pessoa melhor, é preciso ficar preocupado com isso.

Comprometa-se com Deus hoje, para conseguir abandonar um vício, um pecado, ou cultivar uma virtude. Escolha fazer isso, peça a ajuda de Deus, e se esforce pra isso.

“Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” 2 Coríntios 3.18

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David Sousa

Alguém fascinado pela beleza da natureza e pela Beleza para a qual ela aponta. Meus principais interesses no momento são Ciências naturais e Teologia cristã.