Graça não é “Favor Imerecido”

David Sousa
3 min readApr 20, 2022

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Santo Agostinho, o “Doutor da Graça”

Eu queria saber de onde foi que surgiu esse mito evangélico de que Graça significa “favor imerecido”.

Muitos vão começar a me apedrejar e esbravejar o famigerado texto de Efésios 2.8: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus.” — “ora, está muito clara a definição de graça aí. É um dom de Deus”. Não meu amigo. Em nenhum momento este texto define o que é graça. Ele parte do ponto de que graça já é um conceito conhecido. No versículo seguinte ele chega a fazer uma negativa, dizendo que a salvação não vem das obras (mas o próprio termo ‘obras’ talvez precise ser melhor definido ali). Aliás, o texto não diz que a graça é dom de Deus, mas sim que o fato de sermos salvos pela graça é dom de Deus. Outras interpretações dizem que a fé é dom de Deus.

Mas afinal, como a Bíblia define graça então? É aí que está. Ela não define. É claro que a palavra grega original, charis, pode ajudar a desvendar o significado. O termo tem a sim ver com favor ou dom, e também com benevolência. Mas a definição de graça literalmente como “favor imerecido” não é bíblica. Não há qualquer versículo que diga isso, com essas palavras. É claro que eu não estou querendo com isso dizer que a definição é errada. Não existindo nenhuma definição teológica exaustiva de “graça” na Bíblia, torna-se um trabalho para a investigação teológica conceituar o termo.

Assim, o significado de “graça” foi ganhando contornos mais profundos ao longo do desenvolvimento da teologia cristã. Ironicamente, até onde eu sei, nenhum desses significados históricos (que eu saiba) usa as palavras “favor imerecido”. E não foi por falta de oportunidade, já que temos grandes nomes na Teologia histórica que escreveram sobre a Graça, como Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino. Na verdade, essa definição parece ser bem mais recente na teologia, oriunda do evangelicalismo.

É lógico que a definição de graça pode se adequar a um “favor”, ou um “presente”. Meu maior problema, no entanto, é com essa segunda parte da definição, o “imerecido”. Não que a graça tenha que ser merecida. Mas me parece que o termo “imerecido” foi adicionado à definição de “graça” pelos evangélicos para extirpar toda e qualquer noção de “mérito” aplicada à salvação. E eu acredito que isso é problemático e prejudicial à nossa teologia.

Em um certo sentido, claro que podemos dizer que não temos nenhum mérito por alcançar a salvação. Mas se pensarmos por outro lado, a graça é a
aplicação dos méritos de Cristo a nós mesmos: os méritos que são de Cristo se tornam nossos por apropriação, participação na vida e no corpo de Cristo, pela união mística e espiritual que adquirimos com ele. Embora não mereçamos a graça, ela nos faz merecedores da salvação em um certo sentido (no sentido de que os méritos de Cristo se tornam, também, nossos méritos).

Apesar de não parecer familiar à mente evangélica, essa ideia é expressa em muitos textos do Novo Testamento, quando fala, por exemplo, acerca de nos tornamos dignos de Cristo (Mt 10.38) ou dignos do mundo vindouro (Lc 20.35), ou nos inúmeros textos em que fala acerca do juízo final de acordo com as nossas obras (que, é claro, são produzidas pela graça de Deus; mas no fim, são nelas em que o nosso justo veredito final de merecer ou não o céu será
baseado).

A propósito, deixe-me terminar a reflexão com uma definição teológica de graça:

Graça: um auxílio sobrenatural da parte de Deus para os atos salvíficos concecido em consideração dos méritos de Cristo. (Enciclopédia Católica)

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David Sousa

Alguém fascinado pela beleza da natureza e pela Beleza para a qual ela aponta. Meus principais interesses no momento são Ciências naturais e Teologia cristã.