Sobre “Monergismo” e “Sinergismo”

David Sousa
6 min readApr 20, 2022

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Monergismo” e “sinergismo” são simplificações teológicas do processo de salvação. Uma soteriologia (teologia da salvação) que deseje ser bíblica deve, de alguma forma, incluir as duas coisas.

Antes de continuar, vamos definir os termos.

Monergismo: é Deus quem faz tudo, e eu não preciso fazer nada pra ser salvo.

Sinergismo: Deus faz a parte dele e eu também preciso fazer a minha parte para ser salvo.

É comum escutar no meio evangélico, principalmente nos nichos mais influenciados pela teologia reformada, que o ‘monergismo’ é a alternativa mais bíblica ou mais ortodoxa. Ironicamente, se você for procurar na História da Igreja, o próprio termo ‘monergismo’ só surge a partir de Martinho Lutero, mais de 1500 anos depois do início da igreja. A palavra ‘monergismo’ também não aparece na Bíblia.

Ainda ironicamente, a palavra ‘sinergia’, ou, no grego, synergeia (significa trabalhar junto, cooperar) aparece algumas vezes na Bíblia, inclusive em textos falando de salvação (veremos isso depois).

No entanto, isso tudo não quer dizer que a Bíblia ensine estritamente o sinergismo, ou mesmo que a teologia cristã até Lutero só tenha ensinado o sinergismo, em oposição ao monergismo. Na verdade, esta dicotomia ainda não tinha sido criada antes da Reforma Protestante, e só se tornou uma questão relevante de discussão no contexto evangélico (o eterno debate entre calvinismo e arminianismo). O que eu proponho aqui, neste pequeno fragmento, é que o modo bíblico de pensar a doutrina da salvação implica, de alguma forma, nas duas coisas.

Vou colocar aqui uma citação de um dos meus autores cristãos preferidos: C. S. Lewis, em seu livro Cristianismo Puro e Simples, diz que

“A Bíblia encerra a discussão quando junta as duas coisas numa única sentença admirável. A primeira metade diz: ‘Ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor’ [Filipenses 2.12] — o que dá a idéia de que tudo depende de nós e de nossas boas ações; mas a segunda metade complementa: ‘Pois é Deus que efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar’ [Filipenses 2.13] — o que dá a idéia de que Deus faz tudo e nós, nada. Esse é o tipo de coisa com a qual nos defrontamos no cristianismo. Fico perplexo, mas não surpreso.

Veja você, estamos tentando compreender e separar em compartimentos estanques o que Deus faz e o que o homem faz quando se põem a trabalhar juntos. É claro que a nossa concepção inicial desse trabalho é a de dois homens que atuam em conjunto, de quem poderíamos dizer: ‘Ele fez isto e eu, aquilo.’ Porém, essa maneira de pensar não se sustenta. Deus não é assim. Não está só fora de você, mas também dentro: mesmo que pudéssemos compreender quem fez o quê, não creio que a linguagem humana pudesse expressá-lo de forma apropriada. Na tentativa de expressar essa verdade, as diferentes igrejas dizem coisas diversas. Você há de constatar, porém, que mesmo as que mais insistem na importância das boas ações lhe dirão que você precisa ter fé; e as que mais insistem na fé lhe dirão para praticar boas ações. Neste assunto, não me arrisco a ir mais longe.”

Poderíamos colocar as coisas, de modo simples, assim:

Monergismo: é Deus quem faz tudo, e eu não preciso fazer nada pra ser salvo. ❌

Sinergismo: Deus faz a parte dele e eu também preciso fazer a minha parte para ser salvo. ❌

Teologia bíblica: é Deus quem faz tudo, e eu também preciso fazer a minha parte para ser salvo. (Filipenses 2.12,13) ✔️

Eu gosto desses versículos porque eles sintetizam essa ideia muito claramente:

“Operai a vossa salvação com temor e tremor [SINERGISMO],

porque é Deus quem opera em vós o querer e o efetuar [MONERGISMO].”

Paulo diz “operai a vossa salvação” e “é Deus quem opera” no mesmo trecho. É um convite a abraçar o paradoxo envolvido nessa verdade.

Arminianos (sinergistas) em geral enfatizam mais um lado e se esquecem do outro, calvinistas (monergistas) em geral fazem o contrário, mas as melhores versões de calvinismo e arminianismo reconhecem o lugar dos dois modelos dentro da economia da salvação (embora possam discordar sobre onde começa um e onde termina outro).

Os dois lados existem (o humano e o divino, o físico e o metafísico, a causalidade primária e a secundária — pra quem saca de terminologia escolástica), e são inseparáveis. Por um lado, todo o bem e graça vem de Deus (Tg 1.17), mas por outro lado somos cooperadores (grego: synergioi) de Deus (1 Co 3.9). Tiago também diz que “a fé [de Abraão] cooperou (synergei) com as suas obras” (Tg 2.22), e a fé (que é um dom de Deus) foi aperfeiçoada (sim, ele usa exatamente essa palavra) pelas obras (ação humana). Mas não se esqueça de que as próprias obras são produto da graça de Deus! ufa! Talvez seja um pouco confuso, mas é bíblico!

Gosto também de como as duas epístolas de S. Pedro expõem essa tensão entre monergismo e sinergismo na economia da salvação. A primeira carta começa com uma declaração monergista:

“eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação no Espírito, para a obediência e aspersão no sangue de Jesus Cristo” (1Pe 1.2a),

numa clara referência ao papel da Trindade na salvação. Em contraste, o resto da carta está repleta de exortações à obediência, empregando esforço e empenho, além do uso da liberdade. Por exemplo:

“como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto de malícia” (1Pe 2.16a)

A segunda carta tem uma estrutura semelhante. No começo há uma referência monergística:

“pelo Seu divino poder nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade” (2Pe 1.3a)

Todavia, não demora para aparecerem as exortações de cooperação com à graça:

“Por isso mesmo, reunindo toda a vossa diligência, acrescentai à vossa fé a virtude” (2Pe 1.7a)

“Procurai com diligência cada vez maior confirmar a vossa vocação e eleição” (1.10a)

Há também referências interessantes sobre este tema no Antigo Testamento:

“Porque tudo vem de ti, Senhor, e do que é teu to damos.” 1 Crônicas 29.14

Essa é uma das minhas preferidas. Podemos e devemos reconhecer que tudo vem de Deus, inclusive na nossa salvação, mas aquilo que vem de Deus gera a nossa cooperação — que é uma parte fundamental do processo.

“Converte-nos a ti, SENHOR, e seremos convertidos” Lamentações 5.21a

Deus age na iniciativa e nós agimos em resposta. Mas até a nossa resposta vem de Deus.

“…todas as nossas obras tu as fazes por nós.” Isaías 26.12

Quem salva é Deus, não o homem. Deus faz tudo. O homem faz uma parte desse tudo.

A vantagem de preservar o equilíbrio nessa tensão de extremos é que não caímos nos perigos nem de um nem do outro extremo. Por um lado, o sinergismo puro possui o perigo de nos fazer depender e confiar nos nossos próprios esforços para a nossa salvação, o que é um erro muito grave.

Por outro lado, o monergismo puro, dizendo que Deus já fez tudo, conclui que não precisamos fazer mais nada, o que pode levar a uma espiritualidade passiva e que nega a nossa responsabilidade de guardar os mandamentos como prova de que amamos a Jesus (Jo 14.21) ou de carregarmos a nossa própria cruz (Lc 9.23).

Entre esses dois extremos de um espectro, há o meio termo, onde confiamos inteiramente em Deus para a nossa salvação, pois tudo vem dele, mas não deixamos de encarar nossa responsabilidade em nos esforçar (cf. Lc 13.24, 2Pe 1.5) em progredir no caminho da salvação. O mais belo de tudo isso é que Deus, podendo fazer tudo ele mesmo, ainda escolhe nos usar como instrumentos da nossa própria salvação: as boas obras que ele nos capacita a fazer e produz em nós (Ef 2.10) serão usadas no juízo final para testemunhar ao nosso favor (ou contra nós), levando ao veredito final de justificação ou condenação (sobre isto, veja meu texto sobre o papel das obras na salvação). Como dise Santo Agostinho:

“O Deus que te criou sem ti, não te salvará sem ti” (Sermão 169)

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David Sousa

Alguém fascinado pela beleza da natureza e pela Beleza para a qual ela aponta. Meus principais interesses no momento são Ciências naturais e Teologia cristã.